sábado, 16 de maio de 2015

MARGARIDA, A MULATA DO BREJO

*Dr. Paulo Lima

Ela devida ter sido muito bonita em sua juventude, pois, nos dias de hoje ainda reproduz em suas feições castigadas pelos longos e penosos anos de vida, e também pelo sol inclemente de nosso agreste, resquícios de uma formosura que ficou para trás.  Não sei ao certo a sua idade, mas se já não ultrapassou oitenta e tantos anos está bem próximo de alcançar esta proeza. Analfabeta de pai e mãe, como se diz no popular, Margarida só alcançou a condição de cidadã quando, ao completar a idade de sessenta e cinco anos precisou tirar a certidão de nascimento e os documentos de identificação para tentar receber um benefício da previdência social. Diga-se de passagem, que só conseguiu tal intento graças à boa vontade do então pároco da cidade de Vertentes, município onde foi batizada, que mandou pesquisar nos livros de registro de batismos, em razão da descoberta e o fornecimento, em papel, dos assentamentos do seu batistério. Somente por isto já merece estas mal traçadas linhas.  
Conta-se que Margarida era, em sua adolescência, uma negra bonita e faceira, de olhar gateado, "daquelas que a morte leva depois chora com pena", no dizer da canção quase chorada de um aboio do poeta "Joãozinho aboiador". Nunca casou, embora tenha tido filhos, alguns vivos, de pais desconhecidos, como acorria naqueles tempos, quando a moça donzela era enganada e terminava "embuchada" por um conquistador e rumava pelos caminhos da paixão e da perdição.  Hoje não. Se qualquer engraçadinho "ofender" uma moça donzela - se é que ainda existe isso - e a mesma vier a engravidar, o sujeito terá que assumir a paternidade e, se houver recusa, o exame de DNA certamente dirá quem tem razão. Uma medida justa e razoável para preservar o interesse da criança, conferindo dignidade e uma história familiar, tão necessária à sua formação como pessoa.
Mas, deixemos de tergiversar, pois o assunto é outro, vez que estou tentando contar a estória de Margarida, a mulata do brejo.
Certa feita, conversando com Margarida, ela me contou que teve muitas paixões em sua juventude e até perdeu a conta, junto com a sua inocência. Amores, quase nenhum. Hoje a sua inocência voltou e a velhice nem mais lhe permite estas recordações, pois a memória anda fraca. O prazer que ainda lhe resta - vício dos anos, talvez - é sair de sua casa às escondidas da vista dos parentes e perambular pelas estradas, nos sítios e nas ruas de nossa cidade, pedindo uma esmola a um, uma "ajudinha" a outro, como se ainda fosse uma necessidade de vida. É certo que hoje em dia Margarida não precisa fugir de casa para pedir esmolas, pois recebe o benefício da Lei Orgânica da Assistência Social, instituído pela Lei nº 8.742, de 07 de dezembro de 1993, sancionada pelo então Presidente ITAMAR FRANCO, que busca, através de uma prestação mensal no valor de um salário mínimo, dar um pouco de dignidade às pessoas carentes, que completem sessenta e cinco anos, ou inválidas, pobres, e que nunca exerceram uma atividade vinculada à Previdência Social, cuja família não detém de meios necessários ao seu sustento.
Vez por outra a memória de Margarida reacende e ela fala de suas paixões e das relações pecaminosas de outrora, cujos personagens anônimos e desconhecidos só constam mesmo do seu imaginário. Talvez nem existam.  Certamente vocês sabem que não é fácil contar estórias sobre pessoas simples, pois a vida desses personagens, no mais das vezes, pouco ou nada tem para ser contado ou, quando muito, o que existe é um verdadeiro rosário de sofrimento e iniqüidades, em razão das injustiças sociais às quais são relegadas na quase totalidade de suas vidas, em razão de viverem à margem da chamada sociedade de consumo. E com Margarida não foi e nem é diferente. Mesmo assim, teimoso que sou, enveredei por estas divagações numa tentativa quase quixotesca de tirar do anonimato este personagem de vida tão comum, ao qual o destino lhe reservou a pouca sorte de viver sem ter uma estória de vida para ser escrita.
Certamente, depois que se for, Margarida, a mulata brejeira de poucos amores e muitas paixões, cuja lembrança de sua própria vida se foi com o tempo, não deixará estórias para serem contadas aos seus netos e por isto mesmo é que tentei eternizá-la nestas mal traçadas linhas, certamente a única forma de deixar registrada no papel a estória de personagens quase anônimos, que ainda teimam em atravessar o nosso cotidiano, perambulando pelas estradas, sítios e ruas de nossa "Dália da Serra", a exemplo de Margarida, a mulata brejeira de muitas paixões, poucos amores e raras estórias.
Um abraço a todos.

*DR. PAULO ROBERTO DE LIMA é graduado em Filosofia pela Universidade Católica, bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do Recife e advogado.

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