*Dr. Paulo
Lima
Ela devida ter
sido muito bonita em sua juventude, pois, nos dias de hoje ainda reproduz em
suas feições castigadas pelos longos e penosos anos de vida, e também pelo sol
inclemente de nosso agreste, resquícios de uma formosura que ficou para
trás. Não sei ao certo a sua idade, mas
se já não ultrapassou oitenta e tantos anos está bem próximo de alcançar esta
proeza. Analfabeta de pai e mãe, como se diz no popular, Margarida só alcançou
a condição de cidadã quando, ao completar a idade de sessenta e cinco anos precisou
tirar a certidão de nascimento e os documentos de identificação para tentar
receber um benefício da previdência social. Diga-se de passagem, que só
conseguiu tal intento graças à boa vontade do então pároco da cidade de
Vertentes, município onde foi batizada, que mandou pesquisar nos livros de
registro de batismos, em razão da descoberta e o fornecimento, em papel, dos
assentamentos do seu batistério. Somente por isto já merece estas mal traçadas
linhas.
Conta-se que Margarida
era, em sua adolescência, uma negra bonita e faceira, de olhar gateado, "daquelas
que a morte leva depois chora com pena", no dizer da canção quase
chorada de um aboio do poeta "Joãozinho aboiador". Nunca casou, embora
tenha tido filhos, alguns vivos, de pais desconhecidos, como acorria naqueles
tempos, quando a moça donzela era enganada e terminava "embuchada" por
um conquistador e rumava pelos caminhos da paixão e da perdição. Hoje não. Se qualquer engraçadinho "ofender"
uma moça donzela - se é que ainda existe isso - e a mesma vier a engravidar, o
sujeito terá que assumir a paternidade e, se houver recusa, o exame de DNA
certamente dirá quem tem razão. Uma medida justa e razoável para preservar o
interesse da criança, conferindo dignidade e uma história familiar, tão
necessária à sua formação como pessoa.
Mas, deixemos
de tergiversar, pois o assunto é outro, vez que estou tentando contar a estória
de Margarida, a mulata do brejo.
Certa feita,
conversando com Margarida, ela me contou que teve muitas paixões em sua
juventude e até perdeu a conta, junto com a sua inocência. Amores, quase
nenhum. Hoje a sua inocência voltou e a velhice nem mais lhe permite estas
recordações, pois a memória anda fraca. O prazer que ainda lhe resta - vício dos
anos, talvez - é sair de sua casa às escondidas da vista dos
parentes e perambular pelas estradas, nos sítios e nas ruas de nossa cidade,
pedindo uma esmola a um, uma "ajudinha" a outro, como se ainda fosse
uma necessidade de vida. É certo que hoje em dia Margarida não precisa fugir de
casa para pedir esmolas, pois recebe o benefício da Lei Orgânica da Assistência
Social, instituído pela Lei nº 8.742, de 07 de dezembro de 1993, sancionada
pelo então Presidente ITAMAR FRANCO, que busca, através de uma prestação mensal
no valor de um salário mínimo, dar um pouco de dignidade às pessoas carentes,
que completem sessenta e cinco anos, ou inválidas, pobres, e que nunca
exerceram uma atividade vinculada à Previdência Social, cuja família não detém
de meios necessários ao seu sustento.
Vez por outra
a memória de Margarida reacende e ela fala de suas paixões e das relações
pecaminosas de outrora, cujos personagens anônimos e desconhecidos só constam
mesmo do seu imaginário. Talvez nem existam.
Certamente vocês sabem que não é fácil contar estórias sobre pessoas
simples, pois a vida desses personagens, no mais das vezes, pouco ou nada tem
para ser contado ou, quando muito, o que existe é um verdadeiro rosário de
sofrimento e iniqüidades, em razão das injustiças sociais às quais são
relegadas na quase totalidade de suas vidas, em razão de viverem à margem da
chamada sociedade de consumo. E com Margarida não foi e nem é diferente. Mesmo
assim, teimoso que sou, enveredei por estas divagações numa tentativa quase quixotesca
de tirar do anonimato este personagem de vida tão comum, ao qual o destino lhe
reservou a pouca sorte de viver sem ter uma estória de vida para ser escrita.
Certamente,
depois que se for, Margarida, a mulata brejeira de poucos amores e muitas paixões,
cuja lembrança de sua própria vida se foi com o tempo, não deixará estórias
para serem contadas aos seus netos e por isto mesmo é que tentei eternizá-la
nestas mal traçadas linhas, certamente a única forma de deixar registrada no
papel a estória de personagens quase anônimos, que ainda teimam em atravessar o
nosso cotidiano, perambulando pelas estradas, sítios e ruas de nossa "Dália
da Serra", a exemplo de Margarida, a mulata brejeira de muitas paixões,
poucos amores e raras estórias.
Um abraço a
todos.
*DR. PAULO ROBERTO DE LIMA é graduado em Filosofia
pela Universidade Católica, bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do
Recife e advogado.
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