*Dr. Paulo Lima
O seu primeiro nome de batismo era Edson. Não
lembro o sobrenome, mas na verdade era conhecido como "doutor",
apelido que ganhou graças à sua mãe, Dona Rosa, uma senhora distinta que via
naquele filho único - cujo pai era engraxate - uma esperança em ascender socialmente numa cidade, que, durante muito
tempo se orgulhava de ser chamada de "a cidade dos doutores", em
razão do razoável número de jovens que conseguiam a proeza de subir os degraus
de uma faculdade. Naquela época, por volta de 1970, 1972, em plena ditadura,
não obstante o propalado milagre brasileiro - que se deu às custas de um
endividamento externo cruel do nosso Brasil, refletido agora, possivelmente, na
crise por que passa o nosso País - os militares
gozavam de uma aceitação quase unânime da nossa sociedade conservadora, mas era
quase impossível ver um jovem pobre e negro receber o tão sonhado "canudo
de papel". E quem não lembra aquele samba "O Pequeno Burguês",
do grande mestre da Música Popular Brasileira, Martinho da Vila? O Mestre da
Vila Isabel começa exaltando a felicidade por ter passado no vestibular e, ao
mesmo tempo, desfia um rosário de lamentações a reclamar das dificuldades do
dia a dia, por ser pobre, morar no subúrbio, andar de trem atrasado e estudar
numa faculdade particular. Ele finda a sua canção, cuja letra genial reflete a
realidade de um tempo difícil, cujas universidades públicas eram reservadas aos
filhos privilegiados da fina nata da sociedade da época, com um protesto que
conseguiu inclusive ultrapassar as barreiras do Departamento de Censura da
Polícia Federal e chegar ao sucesso retumbante do carnaval de 1970, dizendo
assim: "E depois de tantos anos, só decepções, desenganos, Dizem que sou
um burguês, muito privilegiado, mas burgueses são vocês, Eu não passo de um
pobre coitado e quem quiser ser como eu, vai ter que penar um bocado, Um bom
bocado, vai penar um bom bocado"...
Eu não sei por
que cargas d água desatei a falar de Martinho da Vila quando o tema proposto é
bem outro. Voltemos a falar do nosso "doutor", que, apesar do carinhoso
apelido posto por sua mãe, Dona Rosa, nunca conseguiu cruzar os degraus de uma
faculdade. A bem da verdade, na época em
que convivi com "doutor", nunca vi a sua mãe chamá-lo pelo apelido,
mas sim, por Edson, por certo em razão de não ter conseguido realizar aquele
sonho, acalentado na infância do jovem "doutor". Ao contrário de uma
faculdade (não tenho certeza se o mesmo,
sequer, conseguiu concluir o ginasial) ele não tinha profissão definida e fazia
alguns "bicos" na marcenaria do meu pai, Expedito - que também
era um mestre na arte da madeira e não na música - quando estava em períodos de abstinência alcoólica. Sim, ele como
alguns jovens de nossa terrinha, Vertentes, que na década de 1970 não tinham muitas
opções de diversão ou ocupação, acabavam por se entregar ao vício da cachaça,
era alcoólatra. Mas também era músico e tocava piston na Banda Musical São
José, onde fomos colegas e contemporâneos, sendo ele um pouco mais velho. Quase
sempre "doutor" estava "prá lá de Bagdá", mas mesmo assim
era uma figura singular, divertida, até. Lembro que certa feita estavam a
conversar animadamente, "doutor", Gilvandro Barbosa, que atualmente
se encontra no comando daquela entidade musical, e Geraldo, meu primo, que
também tocava piston, na calçada da sede da Banda de Música, que,
coincidentemente ficava ao lado da sua residência. De repetente aparece na
janela Dona Rosa e vendo que o seu filho Edson já se encontrava "calibrado" por força do nosso
"Capim Santo",* começou a lamentar o estado do seu
filho e a lhe dar conselhos e, a cada conselho, Gilvandro repetia: "Dona
rosa está coberta de razão"... E a ladainha recomeçava. A certa
altura, "doutor" não
aguentando mais os reclamos de sua mãe saiu-se com essa: "Mãe, deixe de ser besta; não
dê ouvidos a Gilvandro, pois "razão" é um cavalo pai d égua que tem
lá pras bandas do estado! "** Ouvindo tamanha heresia Dona Rosa
calou-se, fechou a janela de sua casa e a conversa entre eles continuou...
Depois que saí
de minha cidade, nos idos de 1977, não ouvi falar muito em "doutor".
Certa feita, perguntando pelo mesmo, não lembro a quem, soube que trabalhava na
Prefeitura de Vertentes e, por ser um "tapuru”
*** doente era muito perseguido
politicamente, perseguição essa que refletia no seu trabalho e, não raras
vezes, por trabalhar em distritos era obrigado a vir à pé para Vertentes, pois
lhe negavam acesso ao transporte da prefeitura, vejam vocês! Tempos depois soube que havia morrido e, como
não sei se foi homenageado pelos seus colegas de profissão, a caminho de sua
última morada, resolvi lhe dedicar estas mal traçadas linhas...
*Para quem não sabe, capim santo era a
denominação popular de uma cachaça - Serra Grande - muito apreciada na época. **
Estado era a denominação popular da empresa agropecuária que existia na época,
em Vertentes, para auxiliar os agricultores e pecuaristas. *** Tapuru é a
denominação da agremiação política oposicionista, que tenta tomar o poder em
Vertentes, atualmente nas mãos da outra agremiação denominada
"carniça", que odeia este nome e prefere ser chamada de "Nação
Vermelha", muito embora os seus integrantes pertençam ao PSDB e não, ao PT
- Partido dos Trabalhadores.
*DR. PAULO ROBERTO DE LIMA é graduado em Filosofia
pela Universidade Católica, bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do
Recife, ex-Procurador Federal, e atualmente exerce a advocacia.
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