*Por Alexandre Veloso
Do sonho para realidade, para o fazer concreto e feito,
passa-se antes pela imaginação fértil do homem que do lado de fora mostra algo
diferente e cinzento, do brilhante lado colorido de dentro da sua alma
brincante, feliz com sua gola brilhante, oriunda do canavial.
Seguir tendências,
acompanhar a moda ditada nas revistas e televisões, ler artigos e editoriais de
moda que guia o vestir no dia a dia, dando dicas como usar isso e aquilo é
fácil. Mesmo assim dúvidas cruéis intransponíveis permeiam a nossa mente diante
de uma ocasião especial ou simplesmente o estilo adequado para aquela ocasião.
Todos nós queremos está de acordo com o estabelecido pelo mercado. Por que
ignoremos regras, sempre estamos seguindo algo, feito antes por alguém em algum
lugar num determinado tempo. Incrível isso.
Em “O Diabo veste
Prada” - eu nem sabia o que significava PRADA - em uma das cenas quando a
discussão sobre a cor do cinto foi esnobada pela ainda suburbana e avessa nova
assessora, a mesma é retrucada, e recebe uma aula do porque da cor do seu
suéter popular e sem charme ser azul. Mas saindo do centro das novidades
comerciais e da ditadura modista, possamos vislumbrar outros horizontes.
Culturas próprias, definidas, com arranjos bem alicerçados nos costumes e práticas
passadas pela oralidade de geração em geração. Na verdade não há manual para as
emoções. Sempre paramos no meio de uma explicação do sentir, para terminarmos a
com conhecida frase - “Só você vivendo para entender o que estou dizendo” -
sempre assim. Assim também se dá quando estamos de frente de algo surreal. Algo
que jamais imaginaríamos. Diferente. Porém não aplicável na nossa doutrina da
prática cotidiana, que as pessoas precisam ser de tal forma e assim reagir de
forma tal. Nunca esperamos da pedra um flor. Mas que mal fez a pedra gente? Só
mais um paradigma, inventado, como o escuro é ruim, e quando a coisa fica
preta, acabou-se o mundo. Nada disso, alguém nos disse e ninguém nunca
desmentiu, assim virou verdade e ficou encrustado em nossa mente. Depois é só
repetir e tá tudo certo. Será? Pensando assim, geramos imagens já pré-formadas
no subconsciente mediante as algumas situações que nos são apresentadas.
Exemplo disso é a
SUÁSTICA usada como símbolo nazista, mas na verdade era um símbolo religioso e
do BEM. A ideia estapafúrdia que comunistas e maçons comiam o fígado das
crianças; veja só que loucura. Porém os mais antenados ainda são vítimas
inconscientes das lições da vovó. Esqueçam as vitrines, internet, revistas e
todas as imagens manipuladas ou não que vendem conceitos e segregam as pessoas
em currais dos gados brancos separados dos malhados. Aproveitando a faxina joga
fora os formatos. Aquela de óculos de aro preto e cabelos desarrumados é a
intelectual. O arrumadinho é meio CDF, o cara de paletó é o mais ricos ou tem o
cargo mais importante. Quase ia esquecendo-se do carro. Medir gente pelo carro
é terrível. Putz!
Estamos todos a pé.
Caminhando. Não por esporte ou porque faz bem a saúde. Nada disso. É por
necessidade mesmo, sob o sol do nordeste brasileiro mais precisamente, na zona
da mata norte de Pernambuco. Ainda madrugada, estamos indo em direção ao ponto
do ônibus. Dali iremos até o canavial. Dependendo do local do corte, a viagem
pode durar uma ou duas horas. Chegando lá, iremos comer um pouco. Um cuscuz
talvez, com sardinha, e café. O cabo define o eito de cada um, a área que cada
um tem para cortar e fazer a produção diária de cana cortada. Agora de revisar
a vestimenta, buscando o máximo de proteção, braço, pernas, mãos, cabelos, olhos,
tudo que poder cobrir é melhor que cubra. A nossa frente o canavial queimado. O
fogaréu da noite anterior levou consigo as palhas, as formigas os animais e as
propriedades minerais da terra. Fica apenas a cana e muita fuligem, em minutos
todos que se atrevam entrar ali, ficaram pretos, sujos. O corte começa. Com o
braço esquerdo, sendo destro, abraça-se a touceira de cana puxando-a pra seu
corpo, enquanto com o braço direito você golpeia com o facão a base da cana.
Concluído com sucesso, as canas são depositadas em pequenos montes enquanto o
trabalho avança. Esse movimento será repetido por muitas vezes. A cada passo,
cada touceira vencida, o sol esquenta. Melhor com ele que o dia de chuva. É
dezembro, início do verão. A sete da manhã o sol arde. No canavial, sob as
roupas grossas e o esforço físico, o suor pinga, derrama, escorre, molha tudo,
incomoda, mas regula a temperatura corporal, sem ele seria impossível tal
tarefa. E o corte continua, a produção do dia tem que atingir mais de dez
toneladas de cana cortadas, numa área de quase dois mil metros quadrados. Muito
trabalho. Com esse cenário, seríamos capazes apenas de pensar em terminar o
mais rápido possível, ou até de fugir, sair correndo, ou porque não pedir pra
morrer.
O Desafio aqui é
pensar em algo totalmente adverso a essa realidade. Para ajudar, pensemos nos
homens que estão agora escondidos pelas vestimentas. Todos uniformizados e
transformados em andróides, sem identidade. Mas são sensíveis. Tamanha
diferença causa estranheza nessa combinação. Não estou falando de amor de pai e
filho. De paixão hetero ou homossexual. Mas de arte. De gente que ali, sob tais
condições está povoando seus pensamentos com cores, brilhos e movimentos. Ali
já estão pensando na emoção que será sentida na estréia. Dos aplausos que não
virão, mas ele pode ouvir desde já. Ali o pensamento voa mediante os tantos
detalhes que precisam ser examinados, elaborados e executados antes do carnaval
chegar. A cada corte, a padronagem da fita da guiada vai sendo formulada e
colocada junta com os demais apetrechos que virá a compor a mágica fantasia.
São muitos detalhes, são lantejoulas, miçangas, fitas, franjas, chicote,
tecidos para fazer a fofa, cobrir o surrão, o lenço da cabeça. O chapéu traz a
cor do guia espiritual para os mais devotos. A gola tem atenção mais que
especial. Além de todo o brilho, lá está à mensagem do caboclo de lança, os
desenhos, com estrelas e flores, adornos e arabescos coloridos com contornos
contrastantes, o fundo sempre escuro para realçar a pedraria bordado a mão, um
a um, nos terreiros das casas, a sombra da tarde depois do almoço, a trégua que
a dona de casa tem, antes do fazer da janta. Tudo pensado aliando ainda o
movimento e evoluções nas avenidas e ruas que desfilará durante o reinado de
momo. Eita! Todo esse arranjo colorido e mágico é pensado a cada açoite do
facão na cana.
O ser bruto, grosso e
fedorento, só age com violência para vencer a sobrevivência, mas o seu pensar é
leve. Tem poesia. Movimento e muito brilho. A alegria de sair no domingo de carnaval
com a sua nova fantasia é algo mágico. Os rituais. As rezas e crendices. A
mistura de azougue e a fé. Acreditam que recebem um suplemento de força para
suportar vinte e cinco quilos da armadura de caboclo que vem em desfile,
defendendo seu rei e rainha. Com o orgulho de soldado que defende a sua pátria,
ali os caboclos de lança defendem a história e a cultura do povo do campo. A
cultura da nação maracatuzeira. Defendem o direito de ser livre, de brincar, de
se vestir com tanto luxo e riqueza durante o carnaval. De serem os artistas
protagonistas da maior festa popular de um país continental. Ser caboclo de
lança bonito e brilhante, forte aguerrido com sua guiada e seu surrão, sua gola
de esplendor ofuscante, liberte o erê, acalenta o homem sonhador que reza para
São José mandar chuva em março. Por Santana no mês de julho e tem certeza que
ali com sua indumentária radiante ele tem o poder de encantar. Isso é mágico! O
composê da gola brilhante, sob o sol escaldante do canavial, mostra um universo
único de belezas conflituosas que precisam se misturar e torna-se um
personagem. Um mistura liquidificada com um resultado de sabor maravilhoso a
todos que a prova. Pura poesia. E sob o sol escaldante do canavial, a gola
brilhante torna a vida exuberante no carnaval.
*Alexandre Avelloso é Produtor Cultural e especialista em Propaganda e Marketing.
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