*Dr. Paulo Lima
Quem não
lembra desta frase? Eu, quando criança, cansei de ouvi-la em minha cidade
natal, Vertentes. Na inocência de minha tenra idade não me perguntava o porquê
daquela expressão, nem me interessava.
Agora me
vem à memória um domingo, quando já iniciada a noite, após a procissão do nosso
padroeiro São José. Era março, mês em que se comemora o seu dia nas cidades do
interior do Estado. Estava em frente da nossa Igreja Matriz e, sem querer ouvia
a conversa de dois senhores brancos, que na época faziam parte a elite social
de Vertentes. Um deles estava elogiando a organização do evento religioso, cujo
Pároco, Padre Renato Guedes, à época, era o condutor das festividades
religiosas e fazia questão que a festa fosse um sucesso. Eis que de repente aparece em nossa frente,
saindo da igreja, a figura de “Zé Coelho”. Sei que a maioria dos poucos que me
leem neste momento nem conheceram ou sabe quem foi “Zé Coelho” ... Era um senhor distinto, “embora preto”, que
organizava a parte religiosa da festa, junto com o nosso Pároco, Padre Renato,
e o fazia com tanta competência e tanto fervor que mereceu a seguinte frase, de
um deles: eis aí um preto de alma branca!
Eu, na
minha inocência e negritude da época - já que tinha a epiderme revestida pela linda cor
de jambo do Pará, adquirida nas andanças debaixo de um sol a pino, que me
permitiam a liberdade daqueles tempos, me aventurando pelas várzeas e campos
que circundavam a nossa cidade, Vertentes -
fiquei até orgulhoso daquela frase, me sentindo parte daquele personagem, ao
menos na cor. “Zé Coelho” costumava
vestir nas festividades religiosas e, quase sempre, um paletó de cambraia de
linho de um branco impecável! Sua pele negra retinta ficava ainda mais
reluzente naquele contraste e, em verdade, era muito bonito! Não demorou muito
para sentir o quanto cruel e discriminatório era aquele preconceito, escondido
naquela frase aparentemente inocente e elogiosa. Um belo dia, porém, senti na
pele o significado de tão infame expressão.
Quando
me dirigia, uma certa manhã, não lembro o dia da semana, para estudar no Grupo
Escolar Luiz Barbalho andava apressado e, de repete, no meio do trajeto
esbarrei em duas senhoras brancas que estavam a conversar, certamente falando
da vida alheia, impedindo a passagem daqueles que se dirigiam pela calçada, em
direção à escola, com suas ancas gordas e sebentas, quando uma delas indagou:
quem é este negrinho que não presta atenção por onde anda? A outra respondeu: e não é o filho de Maria de
Zé Olegário? Maria, minha mãe, tem a
pele branca; a cor da minha pele vem do meu pai. Para quem não sabe, ainda hoje
é comum nas cidades do interior se referir às pessoas pelo nome dos seus pais,
costume que tem suas raízes nas civilizações orientais e ocidentais da
antiguidade.
Naquela
época era obrigatório o uso de fardamento escolar. Embora a escola fosse pública, a farda tinha
que ser custeada, apesar das dificuldades econômicas, por nossos pais. Era um
fardamento lindo! Camisa branca e calção azul marinho e, como sabem vocês, o
branco combina muito bem com o azul ou o preto aveludado, a cor da minha pele
de então. Hoje carrego em minha tez o marrom encardido das salas da
Procuradoria onde trabalho, adquirida no ambiente insosso e incolor onde passo
a maior parte dos tediosos dias da semana, não raras vezes tirando leite de
pedra ou, mais propriamente, defendendo o indefensável.
Como me
doeu aquela expressão!
Preto de
alma branca porque, cara pálida? Desde
quando alma tem cor? De imediato me veio
à mente aquela cena da procissão e então pude compreender o significado daquela
frase...
É que
senti na pele, como uma chicotada, o olhar superior daquela mulher, como se a
cor de minha pele me diminuísse perante elas. Ainda bem que estas são
lembranças que se encontram depositadas num passado distante e que perderam a
pouca relevância que tinham até então.
Hoje, muito embora o preconceito de cor ainda persista em nossa
sociedade, na maioria das vezes de forma disfarçada, já que os tempos são
outros, o passar dos anos me ensinou, porém, que não importa a cor da pele ou mesmo
a elegância e beleza da roupa que reveste o nosso corpo. Afinal, a cor da nossa
pele é o que menos importa pois, em verdade, hoje sabemos que a nossa alma não
tem cor. Não é mesmo?
Um
abraço a todos.
*PAULO ROBERTO DE LIMA é graduado em Filosofia pela
Universidade Católica, bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do Recife
e atualmente exerce o cargo de Procurador Federal.
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