*Dr.
Paulo Lima
Vertentes, a minha
cidade, a cidade dos meus tempos de criança, era preconceituosa. Tão
preconceituosa a ponto de se autoproclamar, por algum tempo, como a cidade dos
doutores, vejam vocês! Tudo porque,
durante um certo período, alguns dos seus filhos, um pouco mais de meia dúzia,
conseguiram diplomas de médico, de advogado e engenheiro, o que na época era
uma grande proeza! Era assim a minha cidade, naqueles idos de 1965. Creio que
não havia mais que cinco ou seis mil moradores e algumas ruas que os moleques
de então percorriam de uma só carreira. Apesar de não haver famílias ricas, as
classes sociais eram perfeitamente delineadas entre, pobres, aquelas pessoas,
que, aos sábados mal tinham uns trocados para ir à feira livre, e aquelas
outras, ricas, que, aquinhoadas pela sorte de ter um pequeno comércio, um emprego
público ou mesmo uma propriedade rural, podiam se dar ao luxo de encher um ou
dois balaios com frutas, verduras e cereais, que, colocados na cabeça dos
moleques, eram conduzidos com dificuldade até a residência do feliz comprador. Assim era a cidade da minha infância.
Naquela época,
quando uma criança não queria estudar a mãe puxava-lhe a orelha, levando-a até
a janela de sua residência - a maioria das moradias eram constituídas de casa
conjugadas, cujas frentes eram compostas de uma porta de entrada e uma ou duas
janelas -
e, apontando o dedo para a rua, onde se encontrava um gari, naqueles tempos
chamados de varredores de ruas, indagava ao menino ou menina: "Você
quer ser um varredor de rua quando crescer?" Logo em seguida, sem
sequer dar oportunidade ao pequeno para responder, apontava-lhe o caminho da
escola. Ainda lembro do Grupo Escolar Luiz Barbalho, onde aprendi as primeiras
letras, junto a tantas outras crianças de nossa cidade. Lá estudávamos todos
numa mistura democrática entre pobres e ricos, pois ainda não havia escolas
particulares e, ao menos no primário, todos tínhamos iguais oportunidades de
estudo. Não sei se até mesmo os filhos dos chamados varredores de ruas...
Ainda lembro o nome,
ou melhor, o apelido de alguns deles: "Caréu", "Zé
Maneiro" "Louro Feioso" e "Antônio Lavanca". Não lembro de outros. É curioso que eles nunca
eram chamados pelos seus nomes de batismo. Talvez, devido ao preconceito de
terem a profissão de varredores de ruas, pecha que traziam consigo, acompanhada
de suas vassouras e dos seus carros de mão, com os quais recolhiam o lixo. Efetivamente,
varredor de lixo não era uma das profissões mais nobres para a época de então e,
talvez, nem hoje, mas, vocês já imaginaram o que seria de nossas vidas se não
fossem essas pessoas? Talvez fôssemos
mais gente, mais humanos, respondo aqui com os meus botões. É que, se nós
mesmos tivéssemos a obrigação de limpar das ruas, a sujeira, que, muitas vezes
produzimos de forma voluntária, saberíamos dar mais valor aos varredores de
ruas. Li há pouco, não lembro bem se
numa revista ou jornal, que Calgary, no Canadá, é a cidade mais limpa do mundo!
Isto porque se alguém jogar de dentro do carro, na rua, uma "piola" de cigarro ou um papel
de bombom, por exemplo, e for pego em flagrante, leva uma multa que pode chegar
a U$ 1.000,00 (mil dólares), equivalentes a quantia de R$ 4.000,00 (quatro mil
reais), na nossa desvalorizada moeda! Mas, apesar da conscientização de seus
habitantes - eles próprios limpam suas calçadas e produzem o
menor volume de lixo possível em suas residências - ali também os
garis se fazem presentes. Mas lá, diferentemente da cidade da minha infância, um
gari recebe atualmente, como salário básico, fora as vantagens, a quantia
mensal de U$ 1.200,00 (um mil e duzentos dólares), bem diferente do salário de
um dos nossos, que, com certeza não chega, sequer, a um quinto deste valor!
Certamente, porque a empresa terceirizada que presta serviços à prefeitura e é
a "responsável" pela coleta do lixo, fica com a parte do leão!
Cala-te boca...
Mas, voltemos aos
garis. Soube a pouco, bisbilhotando o
facebook, que o último gari dos meus tempos de criança veio a falecer
recentemente. Conversando com o nosso amigo Marcone - um dos vereadores mais atuantes em
nossa cidade - ele
me confirmou a morte de "Caréu", chamando-o pelo
seu nome de batismo, Sebastião. Marcone realmente é um sujeito extraordinário! "Caréu",
esse anônimo tão conhecido por nós, que sempre o víamos varrendo as ruas de
nossa cidade, nos tempos de criança, morreu em janeiro, mês em que se comemora
a morte deste santo, um dos mártires de nossa igreja Católica, São Sebastião.
Até então não sabia o seu nome de batismo, como já dito acima, mas, através
destas mal traçadas linhas a ele rendo as minhas homenagens, desejando
ardentemente que Vertentes, a nossa cidade, se torne, cada vez mais uma cidade
sem preconceitos e voltada para a valorização das pessoas, pois, afinal, sonhar
não custa nada...
*DR.
PAULO ROBERTO DE LIMA é graduado em Filosofia pela Universidade Católica,
bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do Recife, ex-Procurador Federal,
e atualmente exerce a advocacia.